• Sobre tempo, solidão e nostalgia. Por Flávio Medeiros

    Aqui em casa, estamos vendo o remake de Vale Tudo. A música da abertura, os diálogos e os nomes dos personagens me levam automaticamente para aquela sala com sofá de capa estampada, ao barulho da panela vindo da cozinha e à voz da minha mãe falando “vai começar a novela”.

    Esse passado encapsulado aparece assim: inesperado, preciso e cheio de afeto. Junto da música antiga, do cheiro de caderno novo, do gosto de uma comida, vem a saudade de algo maior — do tempo que passava sem pressa.

    Vivemos em uma era que nos cobra velocidade o tempo todo. O feed não para, as notificações não cessam, o novo já vem com data de validade. Estamos constantemente pressionados a acompanhar um mundo que parece correr em alta rotação.

    O filósofo alemão Hartmut Rosa descreve esse fenômeno como “aceleração social”. Segundo ele, a modernidade não apenas mudou o ritmo da vida — ela criou uma cultura baseada na velocidade constante. Aceleramos a tecnologia, as mudanças sociais e, até, o ritmo das nossas rotinas. Criamos ferramentas para ganhar tempo, mas nunca tivemos a sensação de ter tão poucas horas, tão poucos minutos para as pausas.

    É nesse vácuo, nessa falta de tempo para criarmos conexões reais, que a ansiedade se instala e a nostalgia se manifesta. Não como simples saudade do passado, mas como um reflexo emocional profundo. É um desejo por permanência em uma época que não para.

    Esse cenário, talvez, explique o aumento do interesse por vinis, fitas cassete, filmes analógicos, relógios de pulso que só marcam horas, roupas com estética Y2K, playlists “retrô”, reboots de séries que marcaram décadas. Revistas como a Manchete e as Vejas regionais estão voltando ao papel, oferecendo um passado como um lugar para onde voltamos não só por carinho — mas por necessidade.

    O vinil, por exemplo, não está de volta apenas como mídia musical (Em 2023, só no Brasil, as vendas cresceram 136,2% ). Ele voltou como ritual. Há uma liturgia no gesto de escolher um disco, tirar da capa, ler o encarte, colocar na vitrola e ouvir as faixas do início ao fim, na ordem que o artista pré-determinou.

    Mais do que um momento de pausa, esse ritual revela uma mudança de comportamento: não é tecnologia que está em jogo, é o afeto.

    Objetos analógicos retornam porque carregam o que o digital ainda não conseguiu substituir: a presença.
    Eles exigem corpo, toque, espera, pausa. São experiências táteis e sensoriais em um mundo cada vez mais etéreo, fluido, invisível.

    “A NOSTALGIA, PORTANTO, NÃO É SOBRE RECUSAR O PRESENTE.
    É SOBRE BUSCAR PROFUNDIDADE NO MEIO DA VELOCIDADE.”

    E, talvez, nesse mundo cada vez mais fluido e acelerado, o papel mais necessário da comunicação e das marcas seja justamente o oposto: ancorar, aprofundar e marcar presença. Gerar afeto.

    Pensando em Bauman, os líquidos não mantêm sua forma com facilidade; eles escorrem, transbordam, desaparecem. Assim, em uma realidade onde tudo parece escapar, as marcas têm a oportunidade de oferecer pontos de contato tangíveis. Com experiências que tenham forma, cheiro, gosto, textura, som. Que evoquem memórias afetivas e criem novas.

    Marcas que entendem isso deixam de ser só lembradas. Elas passam a ser sentidas. E isso, no fim, talvez seja o que realmente permanece.

    Vamos ver nas cenas dos próximos capítulos.

    Flávio Medeiros é diretor de criação da 3mais e vice-presidente do Clube de Criação do Rio de Janeiro.

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    Discussão

    1. Denise Antuned

      Muito bom, falou tudo com muita consistência, parabéns!

    2. Ceres

      Flavio, boa tarde. Adorei seu texto! Profundo, fundamentado, interessante e com insights! Parabéns e obrigada

    3. Nadia

      Forte abraço Flavinho!

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